Um domingo... Antigo
========== Crônica de Luiz Carlos Casemiro ============
Relembro de domingos antigos vividos em cidade
do interior paulista quando esse dia era o único em que os trabalhadores tinham
como descanso, pois ainda não havia sido implantada a chamada semana-inglesa
que estendia para os sábados, além dos domingos, o benefício de se afastar do
trabalho. Nos sábados havia aulas nas escolas, os bancos abriam no período da
manhã, a indústria e o comércio funcionavam ao longo do dia. Sobrava para o
domingo: folga e lazer dos seus habitantes.
Botucatu surgiu e cresceu no topo de serra. O
arruamento e o casario acham--se em altitudes de oitocentos a mil metros.
Friozinho que nos incomoda desaparece em quinze minutos de exposição ao sol de
montanha. Uma delícia. No verão a brisa que vem lá da serra refresca e faz das
folhagens oportunos leques. Forasteiros que pedem algo que defina nossa terra
ouvem a descrição desta aragem benfazeja. É a cidade dos bons ares, embora, por
vezes, a natureza despeje pés-de-vento assobiando, zunindo e assustando os
moradores.
Na cidade há um harmonioso
nivelamento social, os adultos tem formação escolar assemelhada: poucos
concluíram o ginasial. Ninguém é muito rico, nem muito pobre. As casas são
lares: pai, mãe e filhos. Bichos de estimação: cachorros, gatos e passarinhos. Uma
vizinha tem um cágado de idade incerta, mais de trinta anos, recebeu de herança
da mãe. Outra cria um papagaio que fala palavrões. O velhaco, também idoso, faz
sucesso com o repertório do dialeto dos louros. O vocabulário pornográfico dele
se ombreia ao papagaio de estimação do Capitão Natário da Fonseca, jagunço,
personagem central da obra de Jorge Amado, “Tocaia Grande”.
Algumas
residências têm paredes rentes às calçadas e possuem areazinhas que servem de
abrigo entre a rua e a porta da sala. Umas poucas contam com jardinzinhos. O
instrutor de maquinistas da ferrovia, seo Olivério, tem garagem coberta de
zetaflex para resguardar o seu automóvel De Soto, por isso, conservadíssimo. Sempre
brilhando. No seu veículo foram conduzidas todas as noivas do pedaço nos trajetos
da casa à igreja e, coroado o sim do ato religioso, da igreja ao Lar – agora
com a noiva, o marido e as latas de óleo vazias amarradas no pára-choque traseiro
de seu cobiçado carro. Fazia isso com garbo, vestido elegantemente de terno e
gravata, janota valorizando a importância de sua missão. Os casamentos são
realizados aos sábados à tardinha, no início da noite. Se ele tivesse de
acompanhar um maquinista recém-aprovado, com a atribuição de levar uma
composição de trem no mesmo dia de um casamento, ele transferia para outra data
a aula prática supervisionada de movimentar locomotivas. Não perderia o casório
por nada deste mundo. Na véspera o Olivério caprichava lustro no descabaceiro,
os invejosos assim nomeavam o veículo.
Nessa
comunidade os convites para festas eram verbais e informais, de boca a boca.
Fora o bolo muito bem elaborado por doceira com os bonequinhos de noivos que
ficavam no topo do dito cujo bolo, de três andares, os complementos: doces,
salgados, quitutes, cajuzinhos, petiscos, incumbência das vizinhas. Para beber:
cervejas, guaranás e tubaínas.
Retornando no tempo. Estamos em um
domingo de junho perdido no passado. Faz frio. O sol acalorará o dia somente à
tarde, mais ou menos na hora do jogo da Ferroviária contra o São Bento de
Sorocaba, no Estádio Acrísio Paes Cruz. Partida pelo campeonato paulista da
segunda divisão.
Neste domingo, aliás, como em todos
eles, ocorriam atos e fatos previsíveis. Missa das oito, a das famílias. Mães e
filhos. Os pais, muitos, não se faziam presentes, pois tinham tarefas caseiras ou, aquela
cervejinha no boche. As crianças menores após a missa ficavam para a aula de
catecismo. Os que já tinham a primeira comunhão eram obrigados no sábado à
tarde se confessarem, ajoelhados, perante o padre João, ou Giovanni para
alguns, pois italiano de Taranto, tinha este nome de batismo; chegado à cidade
há poucos anos. Escondido numa cabina enorme de madeira escura, imbuia, ouvia
os pecados da infância: -- briguei com meu irmão; -- xinguei as meninas; -- desobedeci
minha mãe; -- roubei mangas no pomar do seo Ambrósio; (subindo o nível de
gravidade dos pecados, de venial para mortal) -- falei nomes feios; --- pausa
--- finalmente o indefectível -- “pequei contra a castidade”. Confessado isto, o
padre de pança volumosa afeito ao vinho tinto, santo, e ao pasto farto oferecido
pelas beatas, até então saciado e relaxado, desperta da modorra, se mexe (pode-se
ouvir o seu sério Rum! Rum!). Misturando o idioma italiano com o português
macarrônico faz perguntas, mas antes sentencia: -- “Figlio, questo é pecatto
mortale”...
Sim!
No entanto como evitar isso? Moleques fantasiam bobagens quando vêem a professora,
dona Deolinda, um pedaço de mau caminho, com sua silhueta trajando a saia curta,
justa no seu corpo de cintura fina, com adereço – fetiche - de meias de náilon costuradas
num filete atrás das pernas, ainda mais, calçando salto doze... Visão, sonho
para somar mais um pecado mortal contra a castidade para confessarem ao Padre
João no sábado seguinte. Ufa!
... Sinal da cruz... ora-pro-nóbis: -- Três
Ave-Marias pelos pecados leves e dez Pais-Nossos para os pecattos mortales. – Figlio!
Não se esqueça do jejum para comungar e receber a hóstia sagrada na missa de
amanhã.
Os
homens – muitos ainda de pijamas e chinelos – nesta manhã de domingo desincumbiam-se
dos serviços pesados do lar. Uns rachavam lenha para o uso do fogão na semana
que entrava; outros tiravam água do poço e a armazenavam numa grande tina para
a lavagem de roupas. Também enchiam corotes e moringas para uso mais nobre:
beber e cozinhar. As casas situadas nas ruas mais altas tinham poços de até vinte
metros de fundura. Jogar o balde amarrado numa corda tendo a outra ponta presa
numa carretilha com manivela exigia esforço para erguê-lo cheio. Mister para
adultos fortes.
Os que
molhavam jardins e hortas com regador de folhas de flandres juntavam duas tarefas
concomitantes: serviço de poço e aguar as plantas. Menos trabalho era exigido
dos homens que faziam a limpeza das gaiolas dos passarinhos e cuidavam dos
galinheiros: jogar milho, apanhar ovos e cercar um frango para o almoço
dominical.
Havia
aqueles que enceravam as tábuas do assoalho. Utilizavam um escovão de ferro
(muito pesado) articulado em cabo de madeira de modo que pudessem esfregar o
chão com palhas de aço e, posteriormente, brilhar o piso com flanelas. Raras enceradeiras
elétricas importadas dos Estados Unidos, um luxo acessível somente a abastados
tornava a tarefa mais leve. Atualmente o escovão pode ser visto como peça de
museus atestando a dureza da faina doméstica de outrora. Por oportuno citam-se
aqui outros equipamentos utilizados nessa antiga época: ferro de passar roupas
aquecido com brasas acesas de tições do fogão a lenha; torrador de café, bólido
de ferro que se encaixava na grelha do fogão para a torrefação de grãos de café;
moedor de carne e de pães, instrumento de alumínio ou ferro que se fixava na
beirada da mesa da cozinha; pé-de-ferro com três hastes salientes para pregar
ou tachar solados de sapatos ou, fazer meia-sola.
Casados
menos ligados à família jogavam sinuca, truco, palitinho, bocha, nos bares.
Bebia-se muito. Partidários destas diversões ao chegarem a casa cambaleando,
com bafo de cachaça, recebiam reprimendas e descomposturas de suas esposas e filhas.
O finório, com o dito pelo não dito, extirava-se no sofá da sala para repouso. Soneca
com a boca escancarada em ronco ensurdecedor. Refeito se gabava de ter tido o sono
dos justos! Mas que justiça?
Moços solteiros esperavam o
fim da missa postados na calçada defronte da igreja para flertar as moças
filhas-de-Maria quando estas desciam as escadarias do portal do templo. Os
rapazes faziam fiu-fiu quando elas retiravam os véus brancos da cabeça e a fita
azul/encarnada do pescoço. Todas se fingiam de tímidas, como se fosse pecado
este assédio. No fundo (verdadeiramente), para elas, ir à missa incluía esta
motivação. Tanto é que deste procedimento surtiram muitos namoros, noivados,
casamentos e novas famílias povoaram a cidade serrana.
O
futebol sempre esteve associado aos dias de domingo. Vitórias e derrotas.
Alegrias e tristezas. Algum rebuliço, discussões e até brigas. A partir de dez
e meia, antes da macarronada da mama, aconteciam os jogos do campeonato
varzeano da cidade. Uma dúzia de clubes, representativos de bairros ou de
empresas disputavam troféu oferecido pela Rádio Emissora. De suas sedes partiam
três ou quatro caminhões lotados na carroceria de jogadores já uniformizados e
os mais fanáticos torcedores. O Sete de Setembro e o Inca representam o Bairro
da Estação, o primeiro da Vila dos Lavradores e o segundo da Vila Antártica.
Tinham grandes torcidas, pois nesses locais moravam centenas de famílias de
ferroviários. Os campos eram de terra ou de areião; gramados somente os do Lavapés
(DER), da Ferroviária e da Associação; estes dois últimos clubes também
disputavam com jogadores profissionais, campeonatos estaduais da segunda
divisão.
Na várzea:
Jogar
contra o Brasil da Vila Maria era dureza. Sempre havia quiprocó. Bafafá e
fuzuê. O juiz Senhor Cabo de Rei (estranho apelido; corruptela de Cabo de
Relho) escalado para apitar jogos ali, não se fazia de rogado: levantava a
blusa do uniforme e mostrava aos belicosos um revólver, três-oitão, na cintura.
Experiência esta, adquirida quando fôra o goleiro da Ferroviária num passado
não tão distante. Sabia dos riscos que corre um juiz de futebol, mormente no
campo do Brasil da Vila Maria.
A cidade detinha as mais importantes funções
ferroviárias da Sorocabana. Mais de mil funcionários. Na sua estação passavam
dezesseis comboios de passageiros todos os dias. Aos domingos transitavam
lotados. Como aqui trocavam a locomotiva, substituíam a tripulação e,
dependendo do horário, engatavam ou retiravam carros dormitórios, essa demora
permitia aos moleques pularem uma mureta da gare e adentrarem nos vagões a
procura de embalagens vazias de cigarros para colecionarem em cadernos, como
álbuns. Domingo à tardinha o Trem de Luxo de Aço era o alvo preferido. Nele era
possível achar marcas novas, como o Que Tal (primeiro cigarro longo do Brasil),
o Winston (primeiro com filtro), o Negritos (enrolado em papel preto com sabor
de alcaçuz), o Cônsul (novidade, fumaça ardida com gosto mentolado), o Fulgor,
o Lord, o Oceania, o Petit Londrinos (estes de cigarros volumosos, ovais,
embalados em caixinhas de papelão), o Automóvel Club (curtinho, a metade de um
longo) e, com sorte, encontrar embalagens sem informação de preço com carimbo
“cortesia para funcionários”.
Não raro essas incursões ousadas terminavam em
safanões desferidos pelos chefes-de-trem quando estes flagravam os invasores. Na
fuga, do alto da mureta, mirando o comandante do trem, os moleques com gestos
obscenos xingavam-no de FDP. Sebo nas canelas. Pior de tudo: muitos desses
senhores alvos da investida frustrada eram vizinhos das famílias dos traquinas.
Nem todos delatavam o ocorrido aos pais, mas quando feita reclamação, meninos
acabavam no corretivo das cintadas.
A televisão não havia sido
inventada. As estações de rádio do Rio de Janeiro: Nacional, Tupi e Mairinque
Veiga e as de São Paulo: Record, Piratininga, Bandeirantes e Panamericana
proporcionavam um domingo cheio de atrações. Diversão com musicais, programas
de calouros, humorísticos, radionovelas, o Repórter Esso. Irradiavam jogos de
futebol.
No domingo à noite os três cinemas da cidade:
Paratodos, Cassino e Vitória ficavam lotados. As sessões se iniciavam às vinte
horas, após o “footing” na principal rua do centro. Terminadas as sessões pouco
depois das vinte e duas horas, reiniciava-se o passeio e o jogo de sedução,
pois era costume aos rapazes e às moças no primeiro turno da paquera passar
recados de se encontrarem após o filme. Esse sistema de paquera acontecia
apenas aos domingos. Anos depois também aos sábados quando já prevalecia a
semana-inglesa, citada no início desta crônica. Com o advento, em massa, dos
aparelhos de televisão nos domicílios... Babau! Foi-se o “footing”. Saudoso, esperado,
razão de vida, fermento dos namoros. Na atualidade, os três cinemas estão fechados,
meio sucateados, apenas um – o Paratodos - ainda de prédio em pé, como Teatro,
ali na Praça Coronel Moura, cutucando a nossa saudade quando passamos em frente
dele.
As matinês de domingos nesse
cine, das 14 às 16 horas, voltadas para a garotada exibia filmes de faroeste e
aventuras: Zorro e Tarzan. Comédias leves. Quando o herói beijava a mocinha
levava estrondosa vaia da platéia mirim ainda não enfronhada em assuntos
amorosos. Na expectativa do início das sessões os ansiosos meninos batiam
fortemente os pés no assoalho de tacos. Sossegavam quando no alto-falante soava
a música (inesquecível) “O Cinema vai Começar” e lentamente as cortinas se abriam
na enorme tela panorâmica abaulada. Na última meia hora a esperada fita do
seriado. Cada domingo um capítulo. Tenho a certeza de que a TV de hoje copiou
esta antiga diversão para suas novelas e folhetins. No seriado a última cena
terminava sempre em suspense, assim do tipo: mocinho aprisionado pelos bandidos
é amarrado numa tora comprida que vai ser serrada ao meio, de comprido. Motor
ligado ele vai se aproximando da lâmina mortal. Tam! Tam! Tam! ... Assistam o
próximo capítulo no domingo que vem... Será que nosso herói se salvará? Sim,
pois ele é o sal que tempera nossas ilusões. São sete dias para a criançada
refletir e projetar de como o mocinho se safará dessa esparrela.
Nesse
tempo de domingo antigo a vida se desenvolvia quase num casulo, restrita à
região onde nascíamos. O cinema, os jornais, os livros, os interurbanos e o
trem foram capazes de mostrar que havia vida além de nossa cidade. O rádio
operou milagres de comunicação. Os ingênuos – também os disfarçados
espertalhões - não se conformavam do milagre de como aquela caixa falante...
falava sem ter nenhuma pessoa ali dentro dela. A expressão “No Ar” foi criada para não dar
muitas explicações aos incrédulos de que a voz se propagava em ondas sonoras
nos céus. Iniciava-se aí a era da globalização. A televisão ainda adotou o
termo “No Ar”, no entanto a Internet usa o mesmo espaço, porém com outra designação:
“Na nuvem”. O infinito é o limite das nações.
E o domingo do passado também ficou na nuvem.
Na nuvem da saudade.
São
Paulo (SP), 06 de junho de 2014.
Luiz Carlos Casemiro
Nota: A
ortografia utilizada é anterior à reforma de 1990 por opção sentimental.