segunda-feira, 23 de junho de 2014

UM DOMINGO... ANTIGO



                     Um domingo...  Antigo

 ==========  Crônica de Luiz Carlos Casemiro   ============
           
              Relembro de domingos antigos vividos em cidade do interior paulista quando esse dia era o único em que os trabalhadores tinham como descanso, pois ainda não havia sido implantada a chamada semana-inglesa que estendia para os sábados, além dos domingos, o benefício de se afastar do trabalho. Nos sábados havia aulas nas escolas, os bancos abriam no período da manhã, a indústria e o comércio funcionavam ao longo do dia. Sobrava para o domingo: folga e lazer dos seus habitantes.
               Botucatu surgiu e cresceu no topo de serra. O arruamento e o casario acham--se em altitudes de oitocentos a mil metros. Friozinho que nos incomoda desaparece em quinze minutos de exposição ao sol de montanha. Uma delícia. No verão a brisa que vem lá da serra refresca e faz das folhagens oportunos leques. Forasteiros que pedem algo que defina nossa terra ouvem a descrição desta aragem benfazeja. É a cidade dos bons ares, embora, por vezes, a natureza despeje pés-de-vento assobiando, zunindo e assustando os moradores.
              Na cidade há um harmonioso nivelamento social, os adultos tem formação escolar assemelhada: poucos concluíram o ginasial. Ninguém é muito rico, nem muito pobre. As casas são lares: pai, mãe e filhos. Bichos de estimação: cachorros, gatos e passarinhos. Uma vizinha tem um cágado de idade incerta, mais de trinta anos, recebeu de herança da mãe. Outra cria um papagaio que fala palavrões. O velhaco, também idoso, faz sucesso com o repertório do dialeto dos louros. O vocabulário pornográfico dele se ombreia ao papagaio de estimação do Capitão Natário da Fonseca, jagunço, personagem central da obra de Jorge Amado, “Tocaia Grande”.          
                    Algumas residências têm paredes rentes às calçadas e possuem areazinhas que servem de abrigo entre a rua e a porta da sala. Umas poucas contam com jardinzinhos. O instrutor de maquinistas da ferrovia, seo Olivério, tem garagem coberta de zetaflex para resguardar o seu automóvel De Soto, por isso, conservadíssimo. Sempre brilhando. No seu veículo foram conduzidas todas as noivas do pedaço nos trajetos da casa à igreja e, coroado o sim do ato religioso, da igreja ao Lar – agora com a noiva, o marido e as latas de óleo vazias amarradas no pára-choque traseiro de seu cobiçado carro. Fazia isso com garbo, vestido elegantemente de terno e gravata, janota valorizando a importância de sua missão. Os casamentos são realizados aos sábados à tardinha, no início da noite. Se ele tivesse de acompanhar um maquinista recém-aprovado, com a atribuição de levar uma composição de trem no mesmo dia de um casamento, ele transferia para outra data a aula prática supervisionada de movimentar locomotivas. Não perderia o casório por nada deste mundo. Na véspera o Olivério caprichava lustro no descabaceiro, os invejosos assim nomeavam o veículo.
                         Nessa comunidade os convites para festas eram verbais e informais, de boca a boca. Fora o bolo muito bem elaborado por doceira com os bonequinhos de noivos que ficavam no topo do dito cujo bolo, de três andares, os complementos: doces, salgados, quitutes, cajuzinhos, petiscos, incumbência das vizinhas. Para beber: cervejas, guaranás e tubaínas.
                    Retornando no tempo. Estamos em um domingo de junho perdido no passado. Faz frio. O sol acalorará o dia somente à tarde, mais ou menos na hora do jogo da Ferroviária contra o São Bento de Sorocaba, no Estádio Acrísio Paes Cruz. Partida pelo campeonato paulista da segunda divisão.
                        Neste domingo, aliás, como em todos eles, ocorriam atos e fatos previsíveis. Missa das oito, a das famílias. Mães e filhos. Os pais, muitos, não se faziam presentes,  pois tinham tarefas caseiras ou, aquela cervejinha no boche. As crianças menores após a missa ficavam para a aula de catecismo. Os que já tinham a primeira comunhão eram obrigados no sábado à tarde se confessarem, ajoelhados, perante o padre João, ou Giovanni para alguns, pois italiano de Taranto, tinha este nome de batismo; chegado à cidade há poucos anos. Escondido numa cabina enorme de madeira escura, imbuia, ouvia os pecados da infância: -- briguei com meu irmão; -- xinguei as meninas; -- desobedeci minha mãe; -- roubei mangas no pomar do seo Ambrósio; (subindo o nível de gravidade dos pecados, de venial para mortal) -- falei nomes feios; --- pausa --- finalmente o indefectível -- “pequei contra a castidade”. Confessado isto, o padre de pança volumosa afeito ao vinho tinto, santo, e ao pasto farto oferecido pelas beatas, até então saciado e relaxado, desperta da modorra, se mexe (pode-se ouvir o seu sério Rum! Rum!). Misturando o idioma italiano com o português macarrônico faz perguntas, mas antes sentencia: -- “Figlio, questo é pecatto mortale”...
                  Sim!
                    No entanto como evitar isso?  Moleques fantasiam bobagens quando vêem a professora, dona Deolinda, um pedaço de mau caminho, com sua silhueta trajando a saia curta, justa no seu corpo de cintura fina, com adereço – fetiche - de meias de náilon costuradas num filete atrás das pernas, ainda mais, calçando salto doze... Visão, sonho para somar mais um pecado mortal contra a castidade para confessarem ao Padre João no sábado seguinte. Ufa!
                    ... Sinal da cruz... ora-pro-nóbis: -- Três Ave-Marias pelos pecados leves e dez Pais-Nossos para os pecattos mortales. – Figlio! Não se esqueça do jejum para comungar e receber a hóstia sagrada na missa de amanhã.
                    Os homens – muitos ainda de pijamas e chinelos – nesta manhã de domingo desincumbiam-se dos serviços pesados do lar. Uns rachavam lenha para o uso do fogão na semana que entrava; outros tiravam água do poço e a armazenavam numa grande tina para a lavagem de roupas. Também enchiam corotes e moringas para uso mais nobre: beber e cozinhar. As casas situadas nas ruas mais altas tinham poços de até vinte metros de fundura. Jogar o balde amarrado numa corda tendo a outra ponta presa numa carretilha com manivela exigia esforço para erguê-lo cheio. Mister para adultos fortes.
                    Os que molhavam jardins e hortas com regador de folhas de flandres juntavam duas tarefas concomitantes: serviço de poço e aguar as plantas. Menos trabalho era exigido dos homens que faziam a limpeza das gaiolas dos passarinhos e cuidavam dos galinheiros: jogar milho, apanhar ovos e cercar um frango para o almoço dominical.
                   Havia aqueles que enceravam as tábuas do assoalho. Utilizavam um escovão de ferro (muito pesado) articulado em cabo de madeira de modo que pudessem esfregar o chão com palhas de aço e, posteriormente, brilhar o piso com flanelas. Raras enceradeiras elétricas importadas dos Estados Unidos, um luxo acessível somente a abastados tornava a tarefa mais leve. Atualmente o escovão pode ser visto como peça de museus atestando a dureza da faina doméstica de outrora. Por oportuno citam-se aqui outros equipamentos utilizados nessa antiga época: ferro de passar roupas aquecido com brasas acesas de tições do fogão a lenha; torrador de café, bólido de ferro que se encaixava na grelha do fogão para a torrefação de grãos de café; moedor de carne e de pães, instrumento de alumínio ou ferro que se fixava na beirada da mesa da cozinha; pé-de-ferro com três hastes salientes para pregar ou tachar solados de sapatos ou, fazer meia-sola.
                       Casados menos ligados à família jogavam sinuca, truco, palitinho, bocha, nos bares. Bebia-se muito. Partidários destas diversões ao chegarem a casa cambaleando, com bafo de cachaça, recebiam reprimendas e descomposturas de suas esposas e filhas. O finório, com o dito pelo não dito, extirava-se no sofá da sala para repouso. Soneca com a boca escancarada em ronco ensurdecedor. Refeito se gabava de ter tido o sono dos justos! Mas que justiça?
                  Moços solteiros esperavam o fim da missa postados na calçada defronte da igreja para flertar as moças filhas-de-Maria quando estas desciam as escadarias do portal do templo. Os rapazes faziam fiu-fiu quando elas retiravam os véus brancos da cabeça e a fita azul/encarnada do pescoço. Todas se fingiam de tímidas, como se fosse pecado este assédio. No fundo (verdadeiramente), para elas, ir à missa incluía esta motivação. Tanto é que deste procedimento surtiram muitos namoros, noivados, casamentos e novas famílias povoaram a cidade serrana.
                  O futebol sempre esteve associado aos dias de domingo. Vitórias e derrotas. Alegrias e tristezas. Algum rebuliço, discussões e até brigas. A partir de dez e meia, antes da macarronada da mama, aconteciam os jogos do campeonato varzeano da cidade. Uma dúzia de clubes, representativos de bairros ou de empresas disputavam troféu oferecido pela Rádio Emissora. De suas sedes partiam três ou quatro caminhões lotados na carroceria de jogadores já uniformizados e os mais fanáticos torcedores. O Sete de Setembro e o Inca representam o Bairro da Estação, o primeiro da Vila dos Lavradores e o segundo da Vila Antártica. Tinham grandes torcidas, pois nesses locais moravam centenas de famílias de ferroviários. Os campos eram de terra ou de areião; gramados somente os do Lavapés (DER), da Ferroviária e da Associação; estes dois últimos clubes também disputavam com jogadores profissionais, campeonatos estaduais da segunda divisão.
                         Na várzea:
                             Jogar contra o Brasil da Vila Maria era dureza. Sempre havia quiprocó. Bafafá e fuzuê. O juiz Senhor Cabo de Rei (estranho apelido; corruptela de Cabo de Relho) escalado para apitar jogos ali, não se fazia de rogado: levantava a blusa do uniforme e mostrava aos belicosos um revólver, três-oitão, na cintura. Experiência esta, adquirida quando fôra o goleiro da Ferroviária num passado não tão distante. Sabia dos riscos que corre um juiz de futebol, mormente no campo do Brasil da Vila Maria.
                             A cidade detinha as mais importantes funções ferroviárias da Sorocabana. Mais de mil funcionários. Na sua estação passavam dezesseis comboios de passageiros todos os dias. Aos domingos transitavam lotados. Como aqui trocavam a locomotiva, substituíam a tripulação e, dependendo do horário, engatavam ou retiravam carros dormitórios, essa demora permitia aos moleques pularem uma mureta da gare e adentrarem nos vagões a procura de embalagens vazias de cigarros para colecionarem em cadernos, como álbuns. Domingo à tardinha o Trem de Luxo de Aço era o alvo preferido. Nele era possível achar marcas novas, como o Que Tal (primeiro cigarro longo do Brasil), o Winston (primeiro com filtro), o Negritos (enrolado em papel preto com sabor de alcaçuz), o Cônsul (novidade, fumaça ardida com gosto mentolado), o Fulgor, o Lord, o Oceania, o Petit Londrinos (estes de cigarros volumosos, ovais, embalados em caixinhas de papelão), o Automóvel Club (curtinho, a metade de um longo) e, com sorte, encontrar embalagens sem informação de preço com carimbo “cortesia para funcionários”.
                        Não raro essas incursões ousadas terminavam em safanões desferidos pelos chefes-de-trem quando estes flagravam os invasores. Na fuga, do alto da mureta, mirando o comandante do trem, os moleques com gestos obscenos xingavam-no de FDP. Sebo nas canelas. Pior de tudo: muitos desses senhores alvos da investida frustrada eram vizinhos das famílias dos traquinas. Nem todos delatavam o ocorrido aos pais, mas quando feita reclamação, meninos acabavam no corretivo das cintadas.
                    A televisão não havia sido inventada. As estações de rádio do Rio de Janeiro: Nacional, Tupi e Mairinque Veiga e as de São Paulo: Record, Piratininga, Bandeirantes e Panamericana proporcionavam um domingo cheio de atrações. Diversão com musicais, programas de calouros, humorísticos, radionovelas, o Repórter Esso. Irradiavam jogos de futebol.              
                   No domingo à noite os três cinemas da cidade: Paratodos, Cassino e Vitória ficavam lotados. As sessões se iniciavam às vinte horas, após o “footing” na principal rua do centro. Terminadas as sessões pouco depois das vinte e duas horas, reiniciava-se o passeio e o jogo de sedução, pois era costume aos rapazes e às moças no primeiro turno da paquera passar recados de se encontrarem após o filme. Esse sistema de paquera acontecia apenas aos domingos. Anos depois também aos sábados quando já prevalecia a semana-inglesa, citada no início desta crônica. Com o advento, em massa, dos aparelhos de televisão nos domicílios... Babau! Foi-se o “footing”. Saudoso, esperado, razão de vida, fermento dos namoros. Na atualidade, os três cinemas estão fechados, meio sucateados, apenas um – o Paratodos - ainda de prédio em pé, como Teatro, ali na Praça Coronel Moura, cutucando a nossa saudade quando passamos em frente dele.
                   As matinês de domingos nesse cine, das 14 às 16 horas, voltadas para a garotada exibia filmes de faroeste e aventuras: Zorro e Tarzan. Comédias leves. Quando o herói beijava a mocinha levava estrondosa vaia da platéia mirim ainda não enfronhada em assuntos amorosos. Na expectativa do início das sessões os ansiosos meninos batiam fortemente os pés no assoalho de tacos. Sossegavam quando no alto-falante soava a música (inesquecível) “O Cinema vai Começar” e lentamente as cortinas se abriam na enorme tela panorâmica abaulada. Na última meia hora a esperada fita do seriado. Cada domingo um capítulo. Tenho a certeza de que a TV de hoje copiou esta antiga diversão para suas novelas e folhetins. No seriado a última cena terminava sempre em suspense, assim do tipo: mocinho aprisionado pelos bandidos é amarrado numa tora comprida que vai ser serrada ao meio, de comprido. Motor ligado ele vai se aproximando da lâmina mortal. Tam! Tam! Tam! ... Assistam o próximo capítulo no domingo que vem... Será que nosso herói se salvará? Sim, pois ele é o sal que tempera nossas ilusões. São sete dias para a criançada refletir e projetar de como o mocinho se safará dessa esparrela.
                 Nesse tempo de domingo antigo a vida se desenvolvia quase num casulo, restrita à região onde nascíamos. O cinema, os jornais, os livros, os interurbanos e o trem foram capazes de mostrar que havia vida além de nossa cidade. O rádio operou milagres de comunicação. Os ingênuos – também os disfarçados espertalhões - não se conformavam do milagre de como aquela caixa falante... falava sem ter nenhuma pessoa ali dentro dela.  A expressão “No Ar” foi criada para não dar muitas explicações aos incrédulos de que a voz se propagava em ondas sonoras nos céus. Iniciava-se aí a era da globalização. A televisão ainda adotou o termo “No Ar”, no entanto a Internet usa o mesmo espaço, porém com outra designação: “Na nuvem”. O infinito é o limite das nações.
                E o domingo do passado também ficou na nuvem. Na nuvem da saudade.

                                         São Paulo (SP), 06 de junho de 2014.
                                                      Luiz  Carlos  Casemiro


 Nota:  A ortografia utilizada é anterior à reforma de 1990 por opção sentimental.